Milhares acordam diariamente quando o sol ainda
não surgiu para colher a mandioca e fabricar um alimento que é a versão salgada
do açaí quando o assunto é paixão regional. O trabalho é cansativo, muitas vezes
braçal para transformar a matéria prima em um produto final de qualidade
indiscutível. Os produtores – em sua grande maioria ribeirinhos e comunidades
agrícolas – costumam suar para finalmente chegar a um alimento amarelado e
extremamente crocante. Por fim, fazem dele os seus sustentos. A farinha foi uma
das grandes heranças da civilização indígena na região, iniciada há mais de três
mil anos, possivelmente domesticada pelos tupis na bacia amazônica. Como os
primeiros índios descobriram que o tubérculo poderia render tantos subprodutos
ainda é um mistério que deve permanecer por muitos outros anos. Porém, o fato é
que esta cultura tão rústica e inicialmente primitiva conquistou os
colonizadores e influenciou poderosamente o que viria a ser a nossa atual
sociedade. A relação do paraense com a farinha vai além da culinária e de
questões econômicas. Não possui barreiras sociais e pode ser vista como a base
histórica da cultura de um povo.
No Pará, é difícil encontrar uma casa de
família que não possua esse produto ou derivados dele, como bolos, doces,
farinha de tapioca ou até mesmo a famosa farofa. O Estado é atualmente o maior
produtor nacional dessa cultura.
imagem da internet |
Tornou-se elemento comum da paisagem local o
deslocamento de dezenas de caminhões abarrotados de farinha em direção a Belém e
outros centros urbanos ou diversas sacas de diferentes tipos de farinha servindo
como paisagem nas manhãs de diversas feiras livres da capital e interior do
Pará. Seca, d’água, mista, tapioca. Os nomes de cada tipo se misturam aos
sabores e ao gosto popular, que não deixa de apreciar essa especiaria. Já para
alguns especialistas, é considerada a maior invenção do indígena brasileiro.
“Produzimos em 2008 aproximadamente cinco milhões de toneladas de mandioca. Da
produção total, em média 90% vai para agroindústria de farinha, o que significa
um milhão de toneladas de farinha. Considerando a comercialização de 90% desse
total, tanto internamente quanto para outros Estados, gerasse uma receita anual
bruta de aproximadamente R$ 900 milhões.
A farinha responde pelo maior volume de
produto agrícola comercializado no estado do Pará”, disse o especialista sobre o
assunto da Secretaria Estadual de Agricultura (Sagri), Ribamar Santos.
Culturalmente, o produto consegue se destacar ainda mais. “É a base da
alimentação de aproximadamente 32,5% da população paraense. A agroindústria da
farinha gera aproximadamente 80 mil postos de trabalho por ano. Certos produtos
agrícolas e extrativistas, como açaí e outras frutas, peixes e carnes têm a
farinha de mandioca como complementação quase obrigatória na dieta alimentar.
Ela representa o principal alimento produzido pela agricultura familiar no
Pará”, explicou Ribamar Santos. Mais que um sabor, para Edivan Damasceno, de 28
anos, a farinha significa o trabalho de uma vida inteira. Há mais de dez anos
ele enfrenta dois turnos para cultivar a mandioca, por influência do seu pai que
também ganhou o sustento dessa forma. A família dele é apenas mais uma das 40
que recebem o ganha pão através do produto na Agroindústria Bom Jesus, situada
no município de Castanhal. “Isso é uma cultura de várias gerações.
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A farinha não
é só um alimento, é a nossa vida. Mas comemos muito também, nunca falta em
nossas casas. O mais importante é que é ainda a nossa renda, a nossa forma de
sobreviver. Foi aquilo que meu pai me ensinou e que eu continuo levando
adiante”, ressaltou em tom emocionado. Com uma realidade de vida totalmente
diferente, a dentista Conceição Maria Costa tem algo em comum com o Edivan
Damasceno: o amor pela farinha. “A minha família é pequena e mesmo assim lá se
vão em média três quilos por mês. Na minha casa pode faltar tudo, menos uma boa
farofa. A farofa é feita em grande quantidade, colocada em uma vasilha bem
fechada, para mantê la sempre torrada. E quando ao longo dos dias acaba,
imediatamente é feita uma nova porção. Sem contar quando eu viajo pra fora do
Estado. Já cheguei a levar até 5kgs de farinha para os parentes paraenses que
estão morando longe. E quando a mercadoria chega é uma disputa pra saber quem
fica com mais”, revelou. O grandioso acompanhante Como um ator coadjuvante que
de vez em quando rouba a cena, a farinha de mandioca é o acompanhamento mais do
que necessário para a maioria dos principais pratos da culinária paraense.
Afinal de contas, existe maniçoba e pato no tucupi sem uma farinha “da baguda”
por perto? Quando o assunto é sobremesa, também não fica atrás: é mais que
obrigatória no açaí, seja a farinha d’água ou a tapioca. Esta última, por sua
vez, é o ingrediente principal de pudins, bolos, sorvetes, mingaus e outras
delícias recheadas de açúcar. A imaginação da culinária local quando o assunto é
farinha parece não acabar.
Atualmente, ela faz partes de grandes pratos como o
famoso Pirarucu de Casaca, muito degustado em Santarém. Até mesmo o famoso
“churrasquinho de gato”, vendido freqüentemente nos campos de futebol, vem
acompanhado da farinha. É tão paraense quanto torcer pro Remo e o Paysandu. Por
que se orgulhar? A farinha é mais do que uma paixão do paladar paraense, faz
parte da cultura indígena que aqui nasceu e permanece até hoje. Além disso, é o
sustento de milhares de famílias do Estado, o que faz do Pará o maior produtor
de mandioca do Brasil. A atividade ainda é uma das mais rentáveis do Estado, se
configurando no maior volume de produto agrícola comercializado no local.
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