Os brasileiros têm uma relação esquisita com a Amazônia. Não se importam com a sua devastação, mas ficam indignados quando alguém fala em “internacionalizá-la”. A floresta está perdendo, em média, o equivalente ao estado de Sergipe, por ano. Já se foi o equivalente a duas vezes o estado de São Paulo. O ciúme da Amazônia nasce da visão dessa misteriosa massa de verde e água como fonte de imensas riquezas. A complacência com sua destruição vem da fantasia de que ela é inesgotável.
Mas, na realidade, sua história está cheia de sonhos de riqueza que terminam em pó e pobreza. Seus ciclos de afluência têm sido efêmeros. Embora rica em biodiversidade e em minerais de todo tipo, a Amazônia é frágil e, principalmente, esgotável.
Muita gente morreu atrás do mítico “Eldorado” amazônico, repleto de ouro, diamantes e esmeraldas. Ele ganhou força nova, nos anos 1970, quando foi descoberta a província mineral de Carajás, no estado do Pará, pela Vale do Rio Doce, então uma empresa estatal. Carajás é riquíssima, ouro, platina, minério de ferro, cobre, manganês, níquel.
Sul do Pará, Serra Pelada, 1980
Mas o retrato real do sonho mineral, foi o garimpo de Serra Pelada, formado no início dos anos 80. Um pesadelo: no seu auge, chegou a ter mais de 80 mil homens espremidos nas plataformas escavadas no chão. Um buracão de quase 150 metros de profundidade. Foi palco de violência, corrupção, exploração de prostituição juvenil, trabalho infantil. Pelo menos 300 garimpeiros morreram soterrados naquela enorme mina a céu aberto. Foi lá que o sonho do ouro amazônico virou uma mega-tragédia, retratada de forma impressionante pelo fotógrafo Sebastião Salgado.
Quando o governo Lula autorizou a reabertura do garimpo de Serra Pelada, fechado há 25 anos, o garimpeiro Josenias Araújo, que nunca saiu de lá, disse a Carlos Mendes, do Estado de São Paulo: “tem muita gente abandonada por aqui que sonhava com essa decisão. É gente que passa fome e só fala em ouro”.
Os garimpeiros viveram esse tempo todo na pobreza, em torno do lago que se formou naquele buracão, à espera da reabertura. Antônio Trajino Bento, que lá se assentou em 1980, com 25 anos até hoje retira ouro pulverizado da “montoeira”, a terra retirada na escavação. Muito trabalho duro e pouquíssimo ouro. “Dá para sobreviver”, diz ele. Lá, é o sonho que é inesgotável.
Londres e Brasília, outubro de 2006.
Uma declaração do ministro do Meio Ambiente da Inglaterra, David Miliband, apoiando a idéia de constituição de um fundo internacional que seria utilizado para evitar o desmatamento da Amazônia, criou enorme confusão no Brasil. Aquela indignação vinda da suspeita do olho gordo dos estrangeiros na nossa Amazônia.
Três ministros do governo Lula, Marina Silva, do Meio Ambiente, Celso Amorim, das Relações Exteriores, e Sérgio Rezende, da Ciência e Tecnologia, publicaram artigo no jornal Folha de São Paulo, com o título “A Amazônia não está à venda”, para responder ao inglês. Terminavam dizendo que da “Amazônia nós estamos cuidando de acordo com modelos de desenvolvimento baseados em princípios de sustentabilidade definidos pela sociedade brasileira. A Amazônia é um patrimônio do povo brasileiro, e não está à venda”.
É essa visão que está matando a Amazônia. Eles acham que estão fazendo a coisa certa. Dizem que “focar a atenção especialmente nas atuais emissões”, para combater a mudança do clima, “é errado e injusto”. Mas ninguém sério quer isso. O que se quer é conter todos os tipos relevantes de emissões de gases estufa. É perigosa e errada a idéia de que temos o direito de poluir, porque precisamos crescer. Negativo: temos a obrigação de crescer, sem poluir como já poluíram. Um erro não justifica o outro.
O aquecimento global já é um fato e produz efeitos hoje. A humanidade tem menos de 10 anos, para adotar medidas efetivas de redução dos gases estufa e evitar uma grande tragédia. Isso é consenso entre os cientistas. Nicholas Stern, ex economista-chefe do Banco Mundial, divulgou relatório em novembro, mostrando que se nada fizermos a sério, podemos perder entre 5% e 20% da renda mundial, por ano. Para evitar essas perdas, precisaríamos investir o equivalente a 1% da renda mundial, nas próximas três décadas.
Os ministros brasileiros disseram em seu artigo, que o combate ao efeito estufa deve ser feito, principalmente, mudando a matriz energética, para reduzir o uso de carvão e petróleo. De fato, isso precisa ser feito. Mas, no Brasil, a tarefa principal é zerar o desmatamento da Amazônia. Negar isso é desconhecer o papel vital que ela tem na regulação do clima no Brasil e seu potencial para afetar o clima do planeta. No Brasil – e no hemisfério sul – ela é fundamental para o clima. É uma usina de nuvens, que influencia o volume de chuva em todo o país. O desmatamento e, principalmente, as queimadas, reduzem a formação de nuvens e as chuvas.
A Amazônia não segue um modelo sustentável de desenvolvimento definido pelos brasileiros. Vive na desordem com a omissão do governo e a complacência dos brasileiros. Sua economia está nas mãos da produção de soja e da pecuária. Nessa fronteira em expansão, é uma terra sem lei. A vida humana vale quase nada. A grilagem de terras públicas e o desmatamento ilegal abrem campo para a pecuária e a soja. Em muitas fazendas de soja, implantadas em terras ilegais, são freqüentes os flagrantes de trabalho escravo. Madeireiros cortam ilegalmente madeira da floresta, que atravessa o país inteiro, em carretas enormes, mas que parecem invisíveis à fiscalização, para chegar até São Paulo. Empresas, brasileiras e estrangeiras, conhecidas, compram essa produção obtida por meios ilegais.
Não estamos cuidando bem da Amazônia. No governo Lula, já foram destruídos 84 mil km2 da floresta, quase quatro estados de Sergipe. Entre 1998 e 2002, governo de Fernando Henrique Cardoso, foram destruídos 75 mil km2. Em oito anos, desapareceram quase 160 mil km2 da Amazônia, quase quatro vezes o estado do Rio de Janeiro.
Por isso, a proposta brasileira de um fundo pelo qual os países desenvolvidos nos compensariam pela preservação de nossa floresta tropical, não fez sucesso na reunião da Convenção do Clima, em Nairóbi, no Quênia. Propunha receber dinheiro, sem assumir cotas e obrigações formais. Ninguém topou. Um fundo internacional para preservar a Amazônia só será viável e relevante, se o Brasil aceitar metas de redução do desmatamento e um mecanismo internacional de supervisão. Hoje, usando fotos de satélites, é possível monitorar com precisão o que acontece na floresta.
Nairóbi, novembro de 2006.
Se a proposta brasileira não chamou muita atenção, um trabalho apresentado por cientistas do Instituto de Pesquisas da Amazônia, do Woods Hole Research Center e da UFMG, chamou. Apresentado na parte científica da reunião do Clima, mostrou que o aquecimento global associado ao desmatamento pode destruir a Amazônia e a sua destruição pode acelerar dramaticamente o aquecimento global. Mas diz que isso pode ser evitado.
A Amazônia armazena o equivalente a 50 anos das emissões globais de carbono em sua massa orgânica. Cada pedaço dela que é destruído, libera esse carbono para a atmosfera e, ao mesmo tempo, pára de tirar carbono da atmosfera com a fotossíntese.
Impedir a destruição da Amazônia significa manter um patrimônio muito mais valioso do que a madeira, os minérios, a soja e o gado: sua biodiversidade. Ela pode ser a base de uma bioindústria padrão Século XXI, que usaria conhecimento e a pesquisa da biodiversidade para sintetizar produtos naturais bioativos. De amostras naturais seriam obtidos similares sintéticos para medicamentos e outros produtos. Ela sim, poderia gerar um ciclo durável de prosperidade.
Amazônia Setentrional, 2050.
Um grupo de jovens estudantes observa uma savana de milhares de quilômetros. Em menos de 50 anos, quase 40% do que antes era Amazônia viraram cerrado. Chove 20% menos na região. Na seca, mesmo os caudalosos rios amazônicos param de correr em muitos locais. A população vive na pobreza.
Os jovens olham desolados o fracasso das gerações de seus pais e avós, cuja fantasia amazônica produziu essa vasta extensão de pó e pobreza. Ficção de terror científico? Não previsão científica. Pode acontecer, se a degradação da floresta continuar como hoje e se o Brasil e o mundo não começarem a agir já, para conter a mudança climática global.
Essa previsão, reafirmada pelo estudo apresentado em Nairóbi, foi feita pela primeira vez pelo cientista brasileiro Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, INPE, em 1991. No artigo publicado em inglês, falava em “savanization”, “savanização” da Amazônia. Isto é, a transformação de áreas da floresta tropical em cerrado, porém sem a riqueza do cerrado brasileiro, também em acelerado processo de extinção.
Se quisermos evitar isso, precisamos parar de tolerar o que acontece na Amazônia hoje. Temos que trabalhar para zerar o desmatamento e “descarbonizar” a indústria, a geração de energia e os transportes mundiais, para reduzir significativamente a emissão dos gases estufa. E será preciso plantar novas matas. Elas, principalmente na fase de crescimento, “respiram” grandes quantidades de gás carbônico, aumentando o “seqüestro de carbono”, ajudando a acelerar queda das emissões e evitar a tragédia climática.
A Amazônia é mais que esgotável. Já está criticamente ameaçada. É nosso interesse e da humanidade que seja salva. Hoje é um patrimônio que dilapidamos, para enriquecer uns poucos, ameaçando empobrecer a maioria e anular o potencial do Brasil no futuro.
Escrito originalmente para o catálogo da SFW, novembro de 2006.
(sergioabranches.com.br)
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