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CEMITÉRIO DA SOLEDADE ABRIGA HISTÓRIA E ARTE

Basta um olhar mais atento e um pouco de sorte. Em frente à entrada principal do Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, na Avenida Serzedelo Corrêa, Batista Campos, há uma aparição que destoa da realidade.
Esculpido em mármore de lioz, um pequeno menino, com pelo menos 130 anos de idade, pode ser visto agraciado com oferendas, vestindo uniformes escolares e até usando camisas de times de futebol, como Remo e Paysandu.

A estátua enfeita o túmulo de uma criança, que faleceu aos sete anos, conhecida como “menino Zezinho”. Ele morreu junto a milhares de belenenses em meio às epidemias que assolaram a cidade no século XIX.
É o túmulo mais visitado do Soledade, no entanto, é a casa apenas de uma entre as dezenas de entidades populares que moram por ali. Elas são buscadas por devotos que movimentam o local, não só hoje, no Dia de Finados, mas todas as segundas-feiras, quando o cemitério é aberto à visitação.
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1964, o Soledade tem um valor histórico e cultural imensurável. Hoje, o espaço aguarda munícipio e Estado concluírem as etapas do processo que deverá transformá-lo, finalmente, em cemitério-parque, a partir de recursos federais do PAC “Cidades Históricas”.
Enquanto as obras não começam, o Iphan tomou uma iniciativa para aproximar a população do espaço e difundir a importância de preservá-lo. Há 15 dias, uma cartilha especial, contando a história do cemitério e suas especificidades, foi lançada para enriquecer as visitas monitoradas. Elas podem ser agendas por qualquer escola ou grupo interessado em conhecer melhor o Soledade.

NÃO É SÓ VELHO

Desativado em 1880, o cemitério público mais antigo da cidade guarda traços e formas que, apesar da ação natural do tempo, resistiram à virada de dois séculos. Mausoléus, lápides e capelas majestosas dividem espaço com covas rasas e túmulos simples.
O contraste marca a desigualdade social até na hora da morte, segregando as mais de 30 mil pessoas, entre ricas e pobres, enterradas ali. Em meio à diversidade artística das obras, a maioria importada de Portugal, identificamos estilos que vão do neoclássico ao neogótico. Infelizmente, parte desta riqueza está escondida, tomada pela vegetação.
A arquiteta e urbanista Paula Rodrigues, mestranda em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Iphan, realizou uma pesquisa de campo entrevistando os frequentadores do Soledade. Ela constatou um fato que reflete a visão de grande parte da sociedade sobre o cemitério. “Perguntei aos visitantes o que eles sabiam do lugar e, a maioria, dizia: ‘Não sei de nada. Só sei que é muito velho’”, conta.
Sim, o Soledade é “muito velho”, mas está longe de se resumir a isso. “Ele é um símbolo do início do maior período de prosperidade econômica da cidade, a Belle Époque, coincidindo com o ciclo da borracha. O cemitério foi projetado pelo arquiteto favorito do Imperador Dom Pedro I (o francês Pierre Joseph Pézerat) e segue os moldes dos cemitérios monumentais europeus, com forte influência do período artístico do romantismo. Por sua localização central, é um local importantíssimo que, além de seu valor patrimonial, compõe a visualidade e a ambiência da cidade”, explica Paula.
De acordo com a pesquisadora do Iphan, não basta o poder público tomar iniciativas para preservar o Soledade se a população não enxergar seu valor. “O conhecimento precisa ser difundido. Grande parte das pessoas não conhece a história da própria cidade e isso é realmente preocupante. O que nós tentamos fazer é diminuir estas lacunas levando as pessoas para dentro do cemitério e mostrando, na prática, porque é um lugar tão rico”, afirma.
Antes da criação do Soledade, os mortos eram enterrados nas igrejas da cidade. No ano de sua inauguração oficial, em 1850, a população de Belém era de cerca de 75 mil habitantes, sendo quase 20 mil escravos. Com as epidemias de febre amarela, em 1850, e cólera, em 1855, o cemitério foi ocupado rapidamente. Depois, os enterros passam o ocorrer no Cemitério Santa Izabel, no bairro do Guamá.

CEMITÉRIO-PARQUE

Com a execução dos projetos que irão transformá-lo em cemitério-parque, uma articulação que ocorre desde a década de 1990 e segue sem data certa para finalização, o Soledade será restaurado e as ações culturais e educativas deverão ser intensificadas.
A professora da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e restaurada do Museu de Arte de Belém, Rosa Arraes, desenvolve um trabalho de pesquisa no cemitério desde 1989. Através da análise de catálogos da época, ela fez um levantamento que possibilitou o estudo da simbologia dos túmulos.
De acordo com Rosa, a devoção popular atribuída a determinado morto tem origem em algum suposto milagre ou na história de vida da pessoa. 
“Alguns tipos de devoção, como o ato de levar velas para as almas, são muito antigos e ocorriam desde o tempo em que os sepultamentos eram nas igrejas. Por conta do sincretismo religioso, próprio do Brasil, pessoas que não tinham como fazer suas devoções acabavam encontrando outras entidades, santos correlatos, para manifestar sua fé em outros espaços”, explica.
Segundo a professora Rosa Arraes, o projeto que deve transformar o Soledade em cemitério-parque deve levar em consideração tanto seus aspectos materiais quanto imateriais, como as devoções no local.
“O cemitério é, antes de tudo, um espaço para perpetuar a lembrança, a recordação. É um campo da memória muito especial que fala da morte, é importante que não se esqueça disso. Além de seu valor monumental, histórico e artístico, ele tem valores simbólicos imateriais tão grandes quanto os materiais”, comenta.
Além do Menino Zezinho, outros túmulos, como o da Menina Januária, Raimundinha Picanço, Preta Domingas, Escrava Anastácia e dos Gêmeos também são muito visitados e recebem preces, promessas e oferendas. Prova de que, apesar de seus 164 anos e da falta de cuidados apropriados durante décadas, o Soledade, preso em seu próprio tempo, vive. 
Conheça os túmulos mais visitados 
- Os Gêmos: 
Estilo neoclássico em mármore de lioz. Túmulo cercado por gradil de ferro trabalhado, imitando um berço. Imagens infantis representando a morte prematura de inocentes gêmeos. A escultura apresenta dois bebês adormecidos, simbolizando o sono eterno, em uma almofada bordada. As cabeças estão apoiadas em delicados travesseiros, denotando técnica rebuscada inexistente na região. É mais um dos túmulos que recebem muitos devotos e, especificamente, oferendas infantis.

- José (Menino Zezinho):

Estilo neoclássico em mármore de lioz. Criança que faleceu aos sete anos de idade simbolizada por um menino nu sentado que segura um pergaminho com seu nome e data de falecimento. Túmulo mais visitado do Soledade, ele vem sendo objeto de devoção popular há décadas. Fiéis atribuem milagres e graças recebidas por meio do intermédio do “Menino Zezinho”. Em retribuição, costumam deixar oferendas, que vão desde balas, doces, refrigerantes, até camisetas e bonés para vesti-lo. 

- D. Antônia Joaquina Roiz dos Santos:

Escultura de baixo relevo de estilo neoclássico. Casal abraçado em atitude de lamentação. A mulher apoia a cabeça no ombro do homem, que segura nas mãos um galho, provavelmente de uma flor quebrada em associação à vida interrompida. Nota-se uma coluna adornada por guirlanda, que significa merecimentos, com uma tocha deitada ainda queimando. A tocha representa a vida que se extingue, mas como permanece acesa, faz alusão à chama da vida eterna, que ainda é uma esperança. Na cabeça do homem há uma coroa de louros, simbolizando vitórias e conquistas.

- C. A. J. Chermont:

Estilo neoclássico em mármore de Carrara. Mausoléu com escadarias, vitrais, colunas coríntias de fuste estriado e frontão triangular que guarda as iniciais C. A. J. Elas correspondem ao nome da filha do senador Justo Chermont, Cecília Augusta de Assis Chermont, falecida ainda jovem. O portão de bronze trabalhado traz detalhes em espigas. Dentro, há um busto de mulher e três urnas funerárias. O rico senador era filho do Visconde de Arary e chegou a ser governador do Estado e ministro das Relações Exteriores do governo Deodoro da Fonseca.

- Preta Domingas:

Estilo neoclássico em mármore de lioz. Coluna de secção quadrada encimada por uma urna flamejante, simbolizando o fogo eterno. As ampulhetas aladas representam a passagem implacável do tempo, já a representação da flor do cardo/perpétua, na base da urna, fazem referência à saudade. No epitáfio, lê-se: “Aqui jazem os restos mortaes da Preta Domingas. Faleceu em 25 de março de 1871. Signal de gratidão”. A gratidão explica o fato de uma escrava estar entre os mausoléus de ricos e poderosos. Provavelmente, seu último senhor lhe concedeu esta homenagem. O túmulo da escrava é objeto de devoção popular.

- Mariana Isabel:

Estilo neoclássico em que uma coluna baixa sustenta um obelisco, símbolo da influência egípcia, da onde se ergue uma cruz. Na base, consta a inscrição: “Aqui jaz D. Marianna Izabel Leite da Silva. Fallecida n’esta cidade de Belém a 06 de julho de 1880. Amor conjugal”. Provavelmente, por ser homenagem de um esposo apaixonado, este túmulo recebe grande devoção popular, especialmente, em casos matrimoniais. No ano da morte de Marianna, o Soledade seria oficialmente desativado para enterros.

- Escrava Romana/Anastácia:

Sepultura simples delimitada por um gradil de ferro. É um túmulo emblemático, pois pertence a uma escrava reverenciada como a santa popular Anastácia. Na verdade, a escrava Anastácia é alvo de devoção no Rio de Janeiro, onde supostamente está enterrada. No caso do Soledade, o túmulo pode ser de uma mulher homônima ou de uma escrava que era considerada propriedade de Joaquim Francisco Corrêa. O sepultamento da escrava Romana é tido como o primeiro enterro do Soledade.

- Capitão de Mar e Guerra José Joaquim da Silva:

Estilo eclético em mármore de Carrara. Acima, há uma urna flamejante, simbolizando a chama eterna. O frontão é sustentado por cariátides, mulheres no lugar de colunas. A ampulheta alada, representando a passagem do tempo, está acima de uma âncora, que faz alusão à profissão do falecido e é sinal de esperança. As decorações com folhas de acanto representam provações vencidas, já a cobra que morde o próprio rabo nos remete à eternidade. A flor do cardo/perpétua significa perpétua saudade. O capitão foi Comendador da Ordem de São Bento de Aviz e prático das costas do Pará, Maranhão e Cayenna.
(Diário do Pará)

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